O “Novo Marco Legal do Saneamento” (Lei nº 14.026/2020), que trouxe profundas alterações no tema do saneamento básico em nosso país, completou cinco anos em julho de 2025. Entre as principais novidades introduzidas pelo Novo Marco, vale recapitular: a) vedação, para futuro, dos contratos de programa celebrados no contexto das Companhias Estaduais de Saneamento - CESBs; b) incentivos à concessão dos serviços e à privatização, a exemplo da previsão de conversão dos referidos contratos de programa em contratos de concessão nessa última hipótese (Art, 14, caput, da Lei nº 14.026/2020); c) metas à universalização dos serviços de abastecimento (99%) e esgotamento sanitário (90%) até 2033.
Além disso, busca-se não só alcançar as metas, mas também qualificar os serviços, reduzir perdas e reconhecer a relação entre os serviços que compõem o saneamento básico.
Há diversas outras previsões relevantes do Novo Marco Legal do Saneamento (NMSB), alterando a Lei nº 11.445/2007, mas devemos levar em conta que uma interpretação atenta da legislação conduz ao necessário, complexo e dinâmico equilíbrio entre vultosos investimentos e modicidade tarifária. Tal arranjo, por seu turno, demanda uma cuidadosa análise de como a atuação jurídica, considerando os comandos interpretativos em matéria de concessões, saneamento e deveres de universalização, exige a convergência entre aqueles que atuam no setor (concessionárias, Poder Concedente, advogados, órgãos de fiscalização e controle, consumidores na ótica dos deveres que possuem, enquanto usuários de serviços públicos, Poder Judiciário e reguladores).
Dando mais um passo para compreender o protagonismo do Rio Grande do Sul, é indispensável referir que, também em julho de 2025, o Tribunal Pleno do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul reconheceu a legalidade do Leilão da Companhia Riograndense de Saneamento – CORSAN, o qual foi realizado em 20 de dezembro de 2022. Também foi em um mês de julho, mas em 2023, que o contrato de compra e venda e transferência das ações foi celebrado entre Estado do Rio Grande do Sul e o adquirente, Consórcio AEGEA.
Considerando que a CORSAN era uma CESB, companhia estadual de saneamento sob o regime jurídico das sociedades de economia mista, controlada pelo Estado do Rio Grande do Sul, e cuja criação foi autorizada em 1965 pela Lei Estadual nº 5.167, tal empresa celebrara, com os 317 Municípios do Estado, os instrumentos de gestão associada denominados contratos de programa, figura prevista no Art. 13 da Lei dos Consórcios Públicos.
Desestatizada a empresa, a conversão dos contratos de programa em contratos de concessão em caso de alienação do controle acionário, conforme prevê o art. 14 do NMSB, bem como a previsão de anuência tácita são exemplos que ratificam os direcionamentos interpretativos da nova legislação: buscar o atendimento célere à universalização do saneamento, garantindo-se a preservação dos ativos (contratos), dentro da noção de incentivo à participação de privados e da necessidade de adequação dos contratos ao regime das concessões, sem implicar violação ao dever de licitar, na medida em que os procedimentos licitatórios destinados à alienação do controle já cumprem com tal requisito, na linha de consolidada jurisprudência do STF sobre o tema.
A referida alteração da modalidade negocial de prestação de serviços permite a troca da forma de regulação, com extensão do pacto regulatório por meio de cláusulas regulamentares e cláusulas financeiras.
Nesse mesmo contexto, insere-se a revogação do § 6º do art. 13 da Lei de Consórcios Públicos, o qual previa a extinção do contrato no caso de o contratado não mais integrar a administração indireta do ente da Federação que autorizou a gestão associada de serviços públicos por meio de consórcio público ou de convênio de cooperação. Com a revogação de tal dispositivo, ratifica-se, inclusive com a larga chancela de inúmeras decisões judiciais, mais um elemento ao incentivo à preservação dos contratos na hipótese de alienação do controle acionário, agora sob o modelo delegacional de concessão.
Tal panorama parece evidenciar uma recapitulação singela do que importantes estudiosos do tema já falavam desde a publicação do Novo Marco Legal do Saneamento. Ocorre que muito diferente do que tratar nos livros é atuar neste tema perante o Poder Judiciário, órgãos de fiscalização e controle, agentes reguladores. Quanto ao ponto, no Rio Grande do Sul, não faltaram demandas judiciais questionando a validade dos contratos e aditivos celebrados nesse contexto, demandas estas que não têm prosperado, numa demonstração de que o Poder Judiciário do Rio Grande do Sul bem compreendeu as importantes alterações promovidas pelo Novo Marco Legal do Saneamento.
Daí se percebe, então, o protagonismo do Estado do Rio Grande do Sul, pois nós gaúchos fomos chamados a enfrentar tais pontos antes de outros Estados, o que tem gerado importantes dados a integrar a memória (jurisprudência) do Poder Judiciário do Estado do Rio Grande do Sul em relação à legislação federal, Novo Marco Legal do Saneamento, e a servir, portanto, de exemplo para outros Estados e companhias que tenham discussões análogas.
O incentivo à atuação de privados no setor não aparece na legislação por acaso, deriva de decisões baseadas em evidências empíricas: além da insuficiência de recursos federais, com base em dados SNIS de 2018, Diogo Mac Cord de Faria elaborou análises comparativas por meio das quais demonstrou, por exemplo, que o prestador público de saneamento compromete em torno de 42,73% do total das despesas que deveriam ser destinadas à prestação do serviço de saneamento (despesas de exploração) com gastos salariais. Quanto ao ponto, concluiu que “caso os salários médios pagos por essas empresas públicas fossem equivalentes aos pagos aos empregados das empresas privadas, R$ 78 bilhões poderiam ter sido investidos no período de 2007 a 2018”.
E quanto às evidências empíricas posteriores, isto é, registradas após o Novo Marco Legal do Saneamento e execução de projetos para combater tal realidade em prol da efetiva atividade fim dessas empresas: universalização dos serviços de saneamento, imprescindível registrar, novamente, o exemplo do Rio Grande do Sul.
Em 11 de agosto de 2025, a CORSAN, sob regime privado, apresentou dados ao Estado do Rio Grande do Sul referentes aos dois anos da operação pós-desestatização. No caso, registram-se R$ 3,85 bilhões de investimentos, com média anual de R$ 1,9 bilhão, número quase quatro vezes maior que a média anual histórica. Isso sem contar que a Companhia passou, ao lado dos gaúchos, pelo maior desastre da nossa história: as enchentes de 2024. Diante de tal trágico evento, acordou com as agências em postergar para 1º de janeiro de 2025 a aplicação do reajuste tarifário, contratualmente previsto para aplicação anual, em julho, em razão dos prejuízos sofridos por milhares de gaúchos.
Estudos também demonstram que R$ 15 bilhões de investimentos previstos até 2033 podem gerar 47,2 mil empregos por ano no Rio Grande do Sul, entre diretos, indiretos e induzidos, o que poderá se converter em R$ 40,7 bilhões em ganhos sociais, como melhoria da saúde pública, fortalecimento da valorização imobiliária e preservação ambiental, como relata a Presidente da Corsan, Samanta Takimi.
Esse foi o panorama em um contexto de transição, do regime de delegação ao regime de concessão dos serviços públicos, o qual foi possível graças a um marco jurídico sólido: 295 contratos de concessão foram aditivados e outros 22 em negociação, garantindo segurança jurídica e previsibilidade para cumprir as metas.
Daqui em diante, já ingressamos em outros aspectos tão relevantes quanto os anteriormente referidos, e, da mesma forma, assumiremos este protagonismo, carregado de responsabilidade que recai sobre todos nós.
Por exemplo, em relação à gestão adequada dos recursos hídricos, considerando que até 2040 há previsão da redução de 40% da disponibilidade água no Brasil, conforme dados da ANA. Nesse ponto, a gestão dos recursos hídricos não significa autorizar uso de fontes alternativas diante da existência de rede pública de abastecimento, por exemplo. Os recursos hídricos, afinal, são bens de domínio público, sujeitando-se a rigorosos procedimentos de outorga, prevalecendo o interesse coletivo sobre o particular.
Pensar de forma diversa implica, no mínimo: (i) antecipar a escassez hídrica; (ii) comprometer as metas de universalização (sim, uma vez que a escassez hídrica compromete o atendimento a outras áreas, pois é preciso disponibilidade hídrica associada a uma gestão rigorosa para que a água chegue aonde precisa chegar); (iii) comprometer o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão, dentre outros.
Além disso, as decisões judiciais e administrativas, sejam as regulatórias ou dos órgãos de controle e fiscalização exigem constante alinhamento entre a hermenêutica jurídica e a realidade operacional das concessionárias. A interpretação das normas não pode se limitar a um exercício teórico: é preciso reconhecer que a regulação do saneamento básico, setor de infraestrutura, se constrói na confluência de elementos jurídicos, técnicos, econômicos e ambientais, todos atravessados por impactos sociais diretos.
O desafio, portanto, é manter o protagonismo alcançado pelo Rio Grande do Sul não apenas no campo das decisões de grande repercussão – como a desestatização e a preservação de contratos –, mas também na capacidade de antecipar e mitigar riscos que possam comprometer a universalização, a modicidade tarifária e a qualidade do serviço. Isso requer a atuação diligente de todos até naqueles casos propostos por um consumidor individual que, sem provas quanto à situação de desabastecimento, por exemplo, é representado, infelizmente, por uma advocacia que dá indícios de predatória, apenas atrasando um modelo de governança que una transparência, previsibilidade regulatória e mecanismos eficazes de cooperação entre entes públicos, iniciativa privada, agências reguladoras e órgãos de controle.
Assim, ao completar cinco anos da edição do Novo Marco Legal do Saneamento, o Estado do Rio Grande do Sul consolida-se como um verdadeiro laboratório jurídico-regulatório para o setor, acumulando precedentes, experiências e resultados concretos que servirão de parâmetro para outros entes federados.
O futuro, contudo, dependerá da continuidade desse diálogo institucional, do rigor técnico na implementação de políticas públicas e da firmeza na defesa de decisões que, amparadas em evidências e segurança jurídica, permitam que o saneamento básico seja, de fato, um vetor de desenvolvimento econômico, inclusão social e sustentabilidade ambiental para as próximas décadas.